Detentor do segundo maior rebanho de bovinos do Brasil, com 27 milhões de cabeças de gado, o Pará pretende atender as exigências do comércio internacional e ser pioneiro na discussão e implementação de práticas sustentáveis para a cadeia produtiva de carne e couro. Dessa forma, o Estado busca ir na contramão do histórico de desmatamentos e grilagem de terra que constituiu a prática agropecuária da região.
Segundo Marina Piatto, editora executiva da Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), o Pará desponta como um futuro modelo na multiplicação do monitoramento de gado.
“Tudo indica que este processo vai se iniciar pelo Pará, que tem maior abertura de acesso a dados. Estamos no comitê técnico do governo estadual para a criação das regras para o sistema de rastreabilidade individual. O estado sinalizou que até a COP30 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025) não vai mais apresentar compromissos e sim resultados”, conta.
Compartilhar experiências e debater as demandas da cadeia produtiva da carne e do couro dentro da Amazônia Legal, especialmente os desafios da implementação da rastreabilidade, foram os objetivos do primeiro Diálogos Boi na linha, evento realizado no dia 16 deste mês, pelo Imaflora, no município de Marabá, no Pará.
Criado em 2019 pelo Imaflora, em parceria com o Ministério Público Federal, o Programa Boi na Linha é uma iniciativa que pretende conectar a cadeia produtiva de carne e couro de ponta a ponta, por meio de protocolos de monitoramento de fornecedores de gado na Amazônia Legal, além de auditorias, com o objetivo de que a atividade se desenvolva livre do desmatamento ilegal, mão de obra escravizada, invasão de terras públicas ou de povos e comunidades tradicionais.
Desafio da rastreabilidade
De acordo com Marina, o ano de 2023 apresentou o primeiro resultado harmonizado da auditoria, com relatórios padronizados. Porém o rastreamento dos produtores diretos ainda não foi alcançado em sua totalidade.
“Este ano tivemos o primeiro resultado onde todos os frigoríficos seguiram as normas do termo de ajustamento de conduta (TAC), baseados no protocolo Boi na Linha. A nossa meta é aumentar o número de frigoríficos dentro do TAC, para que eles monitorem seus fornecedores diretos. Os problemas dos produtores diretos ainda não foram totalmente resolvidos”.
Segundo o diretor de sustentabilidade da Associação das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), Fernando Sampaio, atualmente as indústrias seguem o Protocolo Boi na Linha na compra de gado. Sampaio aponta também a necessidade de ação conjunta para cobrir o rastreamento tanto de produtores diretos como indiretos.
“O que a indústria está fazendo é aplicar os critérios de rastreabilidade na compra do gado. Pelo menos dentro da Abiec, 87% do nosso abate na Amazônia já segue as diretrizes do protocolo Boi na Linha. Nossa intenção é chegar a 100% no próximo ano. O grande desafio é você fazer isso na cadeia inteira”, afirma Sampaio
“Ninguém resolve a questão agrária sozinho. Você precisa ter o Estado funcionando, setor privado engajado e sociedade civil junto. O Estado precisa atuar na fiscalização ambiental e destinar terras públicas não destinadas. E do lado privado a gente tem que fazer este monitoramento da cadeia, implementar rastreabilidade e ter este controle para todo mundo”, explica o diretor da Abiec.
Enquanto a rastreabilidade individual está em processo, Sampaio aponta a utilização do Sistema de Rastreabilidade Oficial como uma solução para o monitoramento do gado.
“O Brasil tem um sistema de rastreabilidade baseado no GTA (guia de trânsito animal). Uma rastreabilidade em lote. Essa informação existe, mas o frigorífico não tem acesso. Uma solução que propomos a curto prazo é a de usar das informações do GTA para fazer o monitoramento, ao mesmo tempo em que a gente entende que o país tem a necessidade de avançar com a rastreabilidade individual”, resume.
Terra como patrimônio
O processo histórico de ocupação do território amazônico e a forma como a pecuária se estabeleceu na região, traz à tona, para além da implantação da rastreabilidade, a discussão sobre a questão fundiária. Para Maurício Fraga Filho, pecuarista, veterinário e vice-presidente da Associação dos Criadores do Paraá (Acripará), a rastreabilidade precisa caminhar de mãos dadas com a regularização fundiária.
“São muitos os desafios. A regularização fundiária é um problema seríssimo que temos na Amazônia. São vias paralelas que precisam caminhar juntas. Se você vai intensificar o rastreamento, tem que intensificar também a regularização. Não podemos excluir estas pessoas que estão irregulares. A gente tem que separar o joio do trigo, mas tem que dar oportunidade de quem é joio virar trigo, para não fomentar um mercado paralelo que não é bom para ninguém”, afirma.
O desmatamento e recuperação de terras degradadas é outro ponto vulnerável no processo de conformidade da cadeia produtiva da região. O produtor rural Antônio Vieira Caetano, goiano de nascimento, chegou ao Pará ainda criança com o pai quando o lema de ocupação da região era “integrar para não entregar” e o desmatamento irrestrito era uma prerrogativa deste processo. Hoje, aos 72 anos, ele vive a experiência de readequar as próprias terras e compreende que para além do negócio, elas são o principal patrimônio que os produtores devem cuidar.
“Minha terra é regularizada e eu estou cadastrado na pecuária transparente, mas eu ainda tenho passivos. Quero primeiro regularizar isso para depois cuidar do gado. O gado é o meu negócio. Amanhã pode ser soja, cana, qualquer cultura. Mas meu patrimônio primeiro é a terra. A base de tudo é a terra. Precisamos primeiro acertar isso, a questão dos passivos e da regularização fundiária, para em seguida pensar nos próximos passos”, resume.